Faz parte do universo do artista questionar o porquê de fazer e se dedicar a determinado projeto. A gente aprende e se adequa desde pequeno a ter que classificar, responder e definir as coisas, e essa definição às vezes ganha um caminho único. Talvez essa seja, dentre as narrativas do nosso cotidiano ocidental produtivista, umas das que mais agrava nossa visão do mundo. Precisamos definir o que é isso ou aquilo e criar um conceito exato e determinado sobre. E nos agarramos a essa definição e começamos a protegê-la dos questionamentos alheios. Uma herança do funcionalismo europeu que aliado a senso crítico mais baixo pode nos deixar até violentos de tão convictos.
O meu último trabalho trata-se de arranjos instrumentais que têm como base de referência os cantos Vissungos. Eu já tive que definir esse termo “Vissungos” incontáveis vezes desde que comecei a me envolver mais com essa pesquisa. E aí vem muitas vezes aquelas definições organizadas a partir da necessidade da compreensão rápida – são cantos afro-brasileiros, de origem banto entoados em Minas Gerais durante a extração de diamante e ouro em tempos da escravização.
Tá certo. De fato é uma boa definição. Ela nos dá alguns parâmetros de contextualização, histórica, étnica e social. Mas eu estou escrevendo esse texto aqui pra tentar justamente ampliar essa definição sem me preocupar com a linguagem técnica. Aqui ela não vai me ajudar.
Vamos lá. Imagine você pegar uma máquina do tempo e voltar ali pra região de Diamantina, norte de Minas nos séculos XVII ou XVIII. Você vai encontrar uma população majoritariamente preta trabalhando de forma pesada, sendo violentada a todo momento por razões diversas e sempre se esforçando em diversas funções relacionadas todas ao enriquecimento de quem as aprisiona. Uma região rica em diamantes e outras riquezas que essas pessoas buscam e extraem, mas nunca as pertencerá. Elas vivenciam todos os dias a doença, a fome, a morte. Elas muitas vezes nem entendem a língua de quem as escraviza. Elas não escolheram seu próprio nome e são obrigadas a ter uma crença que inicialmente não faz sentido. É difícil de imaginar isso lendo esse texto no nosso celular ou computador. Mas caso você tenha tentado imaginar um pouco isso, pense que agora você está lá com elas e percebe que essas pessoas cantam. E se você estivesse ali e perguntasse para algumas dessas pessoas, por que cantam? Quais e inúmeras respostas seriam possíveis? Talvez seja – Eu canto para passar mais rápido o tempo. Ou – Canto para sentir menos o peso do trabalho, ou – Eu canto para me conectar com os meus deuses, ou para sentir menos fome. Talvez para pedir justiça. Ou eu canto porque o meu povo sempre cantou.
E esse canto ultrapassa a linha do tempo, atravessa os séculos e chega além dos tempos do cativeiro. Agora essas pessoas, mesmo que ainda na miséria, ainda na periferia da sociedade, agora podem organizar um pouco os seus próprios trabalhos. Podem procurar por suas riquezas cavucando a terra. Podem enterrar seus mortos nos cemitérios da vila e até organizar mutirões com amigos ou familiares para plantar algo. E continuam cantando agora misturando a língua mãe africana ao português. Cantam em tarefas diárias pedindo proteção, brincando com os colegas de trabalho e carregando seus mortos em redes e isso enfim são os Vissungos. Uma expressão por necessidade de sobreviver, uma forma de viver de forma comunitária. Uma reza, um lamento, um pedido de ajuda.
Eu fiz esse disco de doze arranjos instrumentais usando as melodias dos Vissungos como base. E esse disco está saindo quase que no mesmo tempo em que faço uma viagem para Angola – para um outro trabalho, que eu nem escolhi, fui convidado coincidentemente. Vou para Luanda, ali é um dos portos onde mais embarcaram as pessoas definidas como bantos vindo para o Brasil em tempos da escravização. No meio dessa coincidência e na ansiedade de ver esse meu trabalho no mundo, eu me questiono porque eu resolvi há alguns anos começar a pesquisar tudo isso. Eu comecei esse texto falando sobre a problemática de definições únicas e me pego buscando resposta para essa pergunta. Tento definir essa resposta em alguma frase ou um fechamento que todo esse texto se justifique e faça sentido E fico muito feliz em saber que a minha resposta não é única.
Eu fiz porque sei que o Brasil foi construído muito por essas pessoas. Fiz porque a sociedade apaga a história delas. Fiz porque quando eu ouço gravações dessas pessoas cantando eu fico emocionado. Quando eu ouço e vejo as Guardas de Congo e Moçambique, aqui em Minas, minha casa agora, eu sempre choro. Fiz porque sei que essas melodias carregam histórias e eu queria contar essas histórias, do meu jeito, usando o violão. Afinal, existem muitas formas de se contar uma história, muitos jeitos. Fiz porque eu acho isso tudo lindo.
Pô, que trabalho legal! Nunca tinha ouvido falar em vissungos. Muito importante recontar nossa história, ouvir aqueles que suportaram o peso do fim do mundo na América e dialogar com suas vozes e seus cantos. Axé!
Meu mestre e professor Felipe. Fiquei muito honrado com esse presente musical. Escutei a musica dezenas de vezes e cada vez que escuto descubro um novo detalhe uma nova beleza e bate na alma, e emociona !! Meus parabens meu amigo.
Felipe, me emocionei com o seu texto. Além de muito bem escrito, me trouxe referências e perspectivas que nunca tinha imaginado. Gosto muito do seu trabalho. Abs, Renato
Meu amigo e mestre Felipe. Linda tua cancao. Escutei diversas vezes e a cada vez ouco um novo detalhe enriquecedor, emocionante!!
Boa sorte companheiro !!